Ruptura com as normas literárias e artísticas estabelecidas e a descoberta de uma identidade nacional. Marco histórico da cultura brasileira, o Modernismo teve sua primeira manifestação pública na Semana de Arte Moderna, em fevereiro de 1922, portanto há exatos 100 anos, em São Paulo.
Tomado inicialmente como uma ação rebelde, um grupo de artistas e literatos se reuniu em uma exposição no Teatro Municipal de São Paulo na semana entre 13 e 17 de fevereiro, que se inseria nas comemorações do Centenário da Independência do Brasil.
Pintores como Anita Malfatti e Di Cavalcanti; escultores como Victor Brecheret e Wilhelm Haarberg; literatos como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira e muitos outros nomes participaram do evento. À época, a Semana não ganhou muito destaque, tanto nos meios locais quanto ao redor do País. Sua importância foi crescendo conforme o tempo passava.
Em Mato Grosso, um Estado afastado dos grandes centros num período em que as comunicações eram precárias, aquela revolução demoraria um pouco a chegar.
Para entender como o movimento desembarca em Mato Grosso, o MidiaNews conversou com a escritora, professora e integrante da Academia Mato-Grossense de Letra (AML), Maria Cristina Campos, e o historiador e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso (IHGMT), Suelme Fernandes.
Dom Aquino e José de Mesquita defendiam uma poesia nos moldes romântico parnasiano. Quer dizer, o soneto, a rima, a bela forma
Conforme os pesquisadores, o cenário literário no Estado era bem diferente naquele 1922. O IHGMT havia sido criado havia pouco tempo, em 1919, pelo então presidente do Estado, Dom Aquino. E mais novo ainda, o Centro Mato-Grossense de Letras acabara de ser fundado, por 12 membros, em 1921. As referências da literatura no Estado eram Dom Aquino Corrêa, figura política e eclesiástica, e José de Mesquita, escritor e membro do Judiciário.
Aqui, essas instituições buscavam a construção e a valorização de uma cultura local, porém ainda voltada às elites, diferente da proposta da Semana de Arte Moderna.
“Dom Aquino e José de Mesquita defendiam uma poesia nos moldes romântico parnasiano. Quer dizer, o soneto, a rima, a bela forma. Eles queriam criar, assim, um programa para o Estado e onde as pessoas viessem para cá para fundar uma ‘civilização’”, diz Maria Cristina.
“Se você pegar as narrativas de Dom Aquino, ele é extremamente espiritual nos acontecimentos históricos. Sempre é uma dádiva, sempre é algo transcendental, porque ele está remetendo ao poder eclesiástico, que ele tinha por ser bispo”, afirma Fernandes sobre o perfil do presidente do Estado e como a literatura era empregada naquele período.
Registros de Modernismo em Mato Grosso
O Modernismo surge inspirado nas vanguardas europeias. O movimento pregava a ruptura com os modelos artísticos convencionais. A ideia era de inovar e produzir uma cultura independente e nacional.
Didaticamente, o movimento é dividido em três fases. A primeira é conhecida como “Heróica” (1992-1930), em que os artistas pregavam a renovação da estética e quebra dos padrões artísticos. Nesse período surgiram os manifestos que emplacavam os ideais daquele grupo. Como exemplo há o Manifesto da Poesia Pau-Brasil e o Movimento Antropófago.
Na segunda fase, conhecida pela Geração de 30 (1930-1945), os artistas apresentavam os problemas sociais e um engajamento político, em um contexto da Era Vargas e da 2ª Guerra Mundial.
E na terceira, chamada de Pós-Modernismo, também conhecida como Geração de 45, que reuniu artistas preocupados em buscar uma nova expressão literária, por meio da experimentação e inovações estéticas, temáticas e linguísticas. Nomes como João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa e Clarice Lispector eram expoentes desta fase.
Em Mato Grosso, época que o Estado era uno com Mato Grosso do Sul, o primeiro registro de um trabalho modernista ocorreu na década de 1930 com Lobivar de Matos. O corumbaense quase não teve reconhecimento de sua obra na época, mas tem sido redescoberto recentemente pelos estudiosos.
“Ele realmente foi um pioneiro na produção moderna. Porque ele olha para o povo, para as classes populares”, conta a pesquisadora. O primeiro livro do autor é “Areôtorare”, publicado em 1935. O nome é um termo bororo que significa “o contador de histórias”, diz Maria Cristina. Segundo a professora, Lobivar era uma figura que contava causos do povo.
A segunda obra do autor, em 1936, é “Sarobá”’, que era o nome de um bairro de Corumbá. “Era um bairro negro, um bairro pobre, que tinha inclusive um prostíbulo”, retrata.
“Foi o único que teve um olhar para essa realidade social e já com a forma moderna. Versos livres, uma forma mais enxuta, tem um estilo bem característico”, completa.
No poema “Devoção”, Lobivar de Matos apresenta os mendigos que viviam próximo da igreja e sua relação com a fé. “Quando sinto vontade de ver santos/ Nunca entro em igreja. / Sento-me num banco de praça / Na boquinha da noite / E fico namorando os desgraçados / Encolhidos na escadaria da igreja”.
Em outro, ele se apresenta no cenário de um poeta não reconhecido, mas que tinha o seu valor: “Eu sou o poeta desconhecido/ Não sei o destino que me espera / Porque sou o próprio destino”.
Ao longo dos anos outros autores que se expressavam por uma linha mais moderna foram aparecendo. Entre eles, Wlademir Dias-Pino, que nasceu no Rio de Janeiro, mas morou na Capital de Mato Grosso durante sua juventude. Em 1948, ele funda em Cuiabá o movimento de vanguarda Intensivismo.
“Ele consegue criar uma produção de vanguarda internacional. E ele fala que a produção dele realmente tem uma raiz cuiabana. Começa com os manifestos na Revista Sarã. Foi uma revista que eles produziram, que ele coloca os manifestos do Intensivismo”, pontua a professora.
O poeta consegue criar um movimento que vai de contraponto ao romantismo estabelecido na cultura local e reúne colegas em torno dessa nova manifestação. “Vladimir é uma figura que conseguiu agregar um grupo. Eles ficavam entusiasmados com aquela coisa nova e publicaram coisas modernas, poemas modernos, já de ruptura”, acrescenta a pesquisadora.
Ele consegue criar uma produção de vanguarda internacional. E ele fala que a produção dele realmente tem uma raiz cuiabana
Dos nomes desse grupo destacavam-se Silva Freire, Rubens de Mendonça, Otoniel Silva, Geraldo Dias da Cruz, Amália Verlangeieri. Na concepção da pesquisadora, essa dupla forma literária desses autores mostrava que esses jovens, apesar de quererem se aventurar no novo do Modernismo, não podiam romper totalmente com a literatura estabelecida na academia por questão política e social.
“Silva Freire, Wladimir são autores que nós vamos ter mais algumas gerações para frente para entender a realeza deles”, acrescenta Fernandes.
O historiador afirma que ainda é possível que existam alguns registros de autores que fizeram modernismo ou outras manifestações no Estado, mas que ainda não foram reconhecidos. “O que sobrou da imprensa marginal de Cuiabá? Quase nada. Essa história ainda pode ser contada”.
Fonte: Mídia News